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No túnel do tempo

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Amuleto
Autor: Roberto Bolaño
Título original: Amuleto
Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Editora: Quetzal
N.º de páginas: 139
ISBN: 978-989-722-088-3
Ano de publicação: 2013

Publicado em 1999, Amuleto é um romance breve que funciona como uma ponte entre as duas monumentais obras-primas de Roberto Bolaño: Os Detectives Selvagens (1998) e o póstumo 2666 (2004). Os livros do escritor chileno, embora autónomos, estão imbricados uns nos outros. Têm vasos comunicantes. Partilham temas, obsessões e personagens. Compreendem-se melhor se lidos em conjunto. Nas mais de mil páginas de 2666 não se encontra uma única frase que justifique o título, mas numa cena nocturna deste Amuleto, com três personagens à deriva pela Cidade do México, a explicação surge quase como um prenúncio: no desamparo da madrugada, a Avenida Guerrero parece-se com «um cemitério de 2666, um cemitério esquecido sob uma pálpebra morta ou nascida morta, as aquosidades desapaixonadas de um olho que por querer esquecer uma coisa acabou por esquecer tudo».
Tal como fizera em Estrela Distante (versão ampliada da história do poeta-aviador Ramírez Hoffman, contada no último capítulo de A Literatura Nazi nas Américas), Bolaño recupera e desenvolve em Amuleto um dos 52 testemunhos que compõem a parte central do romance Os Detectives Selvagens. Ou seja, a história de Auxilio Lacouture, uma uruguaia que ficou fechada quase duas semanas, sem comer, numa casa de banho do quarto andar da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional Autónoma do México, em Setembro de 1968, quando o exército e a polícia anti-motim invadiram o campus, esmagando à força a contestação estudantil. Auxilio, figura alta e magra, «versão feminina do Quixote», conta como chegou à capital em data incerta e explica o seu estranho modo de vida, os trabalhos ocasionais (dactilografia, traduções), as limpezas voluntárias em casa de dois poetas espanhóis exilados e os encontros boémios em cafés com os escritores mais novos entre os novos. Ela lê o que eles escrevem, incentiva-os, discute. E talvez por isso se auto-intitule «mãe da poesia mexicana».
A felicidade desta vida simples suspende-se durante a reclusão na casa de banho, um acto de resistência com o seu quê de martírio. Encostada aos mosaicos onde o luar se reflecte, Lacouture cria mentalmente um «túnel do tempo», em que este deixa de ser linear e se estica («como a pele de uma mulher adormecida na sala de operações de um cirurgião plástico»), depois desdobra-se «como um sonho», parte-se, fragmenta-se (ou então abdica do seu continuum, que «sofre um arrepio»). Misturam-se assim acontecimentos passados e futuros, factos reais e imaginados, devaneios e profecias – todo um delírio onírico que Bolaño transforma num fascinante labirinto de memórias. Nas páginas finais, Auxilio vê, num pesadelo, os «fantasmas» de «uma geração inteira de jovens latino-americanos sacrificados», caminhando «inevitavelmente» para o abismo. Eles eram utópicos. Eles cantavam. Bolaño sabe isso, sabe muito bem, porque esteve nessa multidão. Mesmo depois de engolida pela História, lembra-nos, o seu canto «continuou no ar». E esse canto é «o nosso amuleto».

Avaliação: 9/10

[Texto publicado no suplemento Actual, do semanário Expresso]


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